quinta-feira, março 27, 2008

Platero

ASNOGRAFIA*

Leio num dicionário: «Asnografia: s.f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno».

Pobre asno! Tão bom, tão nobre, tão arguto, como tu és! Ironicamente…Porquê? Nem uma descrição séria mereces, tu, cuja descrição certa seria um conto de primavera? Se até ao homem que é bom se deveria chamar asno! Ironicamente…De ti, tão intelectual, amigo do velho e da criança, do arroio e da borboleta, do sol e do cão, da flor e da lua, paciente e reflectido, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados…

Platero, que sem dúvida compreende, olha-me fixamente com os grandes olhos brilhantes, de uma branda dureza, onde brilha o sol, pequenito e chispeante num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeça idílica soubesse que lhe faço justiça, que eu sou melhor do que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!

E escrevi à margem do livro: «Asnografia: s.f.: deve dizer-se com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve Dicionários»


Juan Ramón Jiménez

(*) in Trocar de Rosa, do saudoso poeta Eugénio de Andrade, que traduziu e me deu a conhecer Juan Ramón Jiménez.

quarta-feira, março 26, 2008

A solução americana

A história e a cultura dos Estados Unidos estão a ser usadas para criar tipos ideais que apontam o futuro às gentes de todo o mundo no que respeita a «raça» e a racismo. Os modelos derivados do caso norte-americano são propostos como portadores de um equilíbrio desejável entre diferentes versões étnicas, cívicas e separáveis como unidades discretas do nacionalismo. As tecnologias raciais dos Estados Unidos – a sua política identitária, a acção afirmativa e o profiling – são exportadas como solução pronta a usar para os problemas gerados pelo racismo.

Gilroy, Paul, “Multicultura e Convivialidade na Europa Pós-Colonial” in A Urgência da Teoria, Editora Tinta da China, págs. 174-175

A difusão mundial no modelo norte-americano já se iniciou há muito tempo pela principal indústria difusora de cultura dos Estados Unidos, a indústria de Hollywood e das séries televisivas. É um imperativo que muitos filmes e séries televisivas, como Perdidos, Anatomia de Grey, entre outras, apresentem um elenco multi-étnico, multi-cultural, multi-racial. Subjazem no entanto realidades mais duras como uma hierarquia racial que perdura e ressentimentos que por vezes afloram em epifenómenos, como o do discurso do pastor Jeremiah Wright que apoia Obama, ou quando uma população pobre predominantemente negra, fica presa e abandonada à sua sorte, numa cidade como Nova Orleães ao ser assolada por um furacão.

segunda-feira, março 24, 2008

Lá, onde o Douro se afunda...

Lá, nas altas escarpas onde os grifos nidificam e o Douro se afunda, sopra um vento seco e gélido ao entardecer. Paradoxalmente, em Portugal, conseguimos estar longe de Portugal. Sentamo-nos em silêncio numa rocha e escutamos o rumor das águas que em pequenas cascatas, entre amieiros e salgueiros, se dirigem do pequeno tributário para o rio principal e deste para o mar longínquo. Subimos a sinuosa calçada romana de Alpajares até ao castro, e lá do alto, alongámos o olhar. A paisagem é deslumbrante. Posteriormente aos romanos chamaram à calçada, “Calçada do Diabo”, facto que atesta o retrocesso civilizacional dos povos que lhes sucederam. A calçada foi obra de homens. Homens práticos e organizados, sem dúvida. Obra de romanos.

A morte de Deus

Para dizer a verdade, Deus morreu para poucos, muito poucos. Por certo, morreu para alguns iluminados dos nossos tempos, que muito sabem de Deus e dos homens. Deus morreu, afirmam com veemência, mas não se apercebem realmente, que foram eles que morreram para Deus. Se não, que percorram o mundo, não só o Ocidente, e questionem os homens acerca de Deus e da Sua certa morte. Que oiçam atentamente as respostas. Que viajem por África, pela América Latina, pela Ásia e também, porque não, que percorram as aldeias e vilas da Europa e falem com os homens acerca da morte de Deus.

O século XX foi chão fértil para uma ideia com raízes nos dois séculos precedentes, ideia essa que floresceu no jardim de alguns e que se fundou no fim do Absoluto. A relatividade na Física liga-se ao relativismo na Filosofia e nas Ciências Sociais. Tudo é relativo. Até o Absoluto se tornou relativo. Relativismo cultural... O fim das verdades absolutas… O fim dos axiomas... Uma contradição nos seus termos. Abomina-se, nalguns círculos intelectuais, o Absoluto.

Mas sem referenciais absolutos, sem referências, o Homem perde-se na dúvida. Até Descartes que tudo colocou em metódica dúvida teve de encontrar uma certeza, uma evidência que servisse de suporte a toda a sua estrutura filosófica: e a única certeza a que chegou foi a de que duvidava, ou que pensava que duvidava. Mas como diz Ortega y Gasset, a questão não dever ser “Eu penso logo existo”, mas sim, “Eu existo”.

O Homem para viver neste mundo precisa de referenciais, referências absolutas, caso contrário perde-se. O relativismo é o Caos.

Pois bem, Deus morreu, dizem-nos esses sábios iluminados. Aceitemos. Face a essa morte anunciada aos quatro ventos, o que têm agora a propor-nos? O vazio? O desespero? O Caos?

É que não basta proclamar assim sem mais a morte de Deus. Isso é fácil. É desistir da ideia de Deus. É cessar de O procurar.

Às vezes somos demasiado cegos às evidências que nos rodeiam. Não vemos o que é demasiado evidente, da mesma forma que não vemos o ar que respiramos ou sentimos o solo que pisamos, mesmo por baixo da sola dos nossos sapatos.

terça-feira, março 18, 2008

Olívia

Olívia brilhava entre as flores de Maio.
De fino recorte, os seus seios ondulavam como pradarias ao vento.
O mar dançava frente aos seus olhos e ela, chorava o seu amor distante.

Eu sou quem canta ao vento de passos titubeantes,
Embriagado de tanta liberdade.

Alegres cães brincam na estrada enquanto o Sol sobe no céu.
Próximo de Olívia uma sombra do poeta desenha uma canção.
Do cimo da falésia avistam-se veleiros deixando rastos de espuma.
Lembram-lhe o barco onde o seu amor partiu.

segunda-feira, março 17, 2008

Esta é a paisagem que trago comigo

Praia Verde, Algarve, 17 de Março de 2008

A paisagem é o que cada um traz consigo.

Ortega y Gasset (1915)

domingo, março 16, 2008

Ainda sobre estradas e poltronas - II

O QUINTO IMPÉRIO

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!


Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.


Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!


E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será theatro
Do sai claro, que no atro
Da erma noite começou.


Grecia, Roma, Christandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vae toda a edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?


Fernando Pessoa, Mensagem

Ainda sobre estradas e poltronas - I

Uma vida em que nada é posto em questão, como dizia o filósofo Sócrates, não merece a pena ser vivida. É uma vida de gaiola. Uma vida que se parece com as águas paradas da superfície de um lago numa calma tarde de estio. Antes as revoltas águas do mar. Antes a estrada que a estalagem com as suas poltronas viradas à lareira. Partir, partir, partir…Porque “Ser descontente é ser homem” (Pessoa). É preciso ver o mundo antes que o mundo nos trague.

sábado, março 15, 2008

A Estrada

A estrada é sempre melhor do que a estalagem.
Cervantes

domingo, março 09, 2008

Manifestação

Pelas reacções dos governantes parece que uma manifestação da magnitude da dos professores já não basta. Perderam o respeito à rua.

Pelos vistos é preciso uma manifestação a lembrar as de Maio de 68, onde aos professores se juntariam os estudantes, os enfermeiros, os funcionários públicos, os operários, os descontentes com a política da saúde, os descontentes com a situação da justiça, os pobres e os sem abrigo, os desempregados e os endividados, os idosos e os marginalizados, enfim, uma manifestação com todos os descontentes deste mundo, e em particular, os descontentes com este neoliberalismo que nos sufoca.

Uma manifestação de fazer tremer a terra inteira, para que eles, os políticos que nos governam, tremam também. Uma Manifestação.

Por favor, não nos façam vir para a rua gritar.

sábado, março 01, 2008

A solidão dos mestres

Ensinar sem uma grave apreensão, sem uma reverência perturbada pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem considerar as possíveis consequências individuais e sociais é cegueira. O grande ensino é aquele que desperta dúvidas, que encoraja a dissidência, que prepara o aluno para a partida («Agora deixa-me», ordena Zaratustra). No final, um verdadeiro Mestre deve estar só.
George Steiner, As lições do mestres, Gradiva, pág. 88

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