John Everett, Pizarro Seizing The Inca of Peru, 1846
***
Excerto da obra de Jared Diamond (1997), Armas Genes e Aço:
O que aconteceu naquele dia em Cajamarca é
bem conhecido, visto ter sido registado por escrito por muitos participantes
espanhóis. Para termos uma ideia daqueles acontecimentos, vamos ressuscitá-los
combinando excertos de relatos de seis companheiros de Pizarro, incluindo os
seus irmãos Hernando e Pedro, testemunhos oculares:
«A prudência, a fortaleza de espírito, a
disciplina militar, os esforços, as navegações perigosas e as batalhas dos
Espanhóis – vassalos do mais invencível Imperador do Império Romano Católico, o
nosso verdadeiro Rei e Senhor – produzirão a alegria dos fiéis e o terror dos
infiéis. Por esta razão, e para a glória de Deus nosso Senhor e para o serviço
da Majestade Imperial Católica, tomei por bem escrever esta narrativa e
enviá-la a Sua Majestade, para que todos possam ter conhecimento do que aqui é
narrado. Será para a Glória de Deus, pois conquistaram e trouxeram para a nossa
sagrada Fé Católica um tão vasto número de pagãos, ajudados pela Sua Sagrada
orientação. Será para honra do nosso Imperador porque, em virtude do seu grande
poder e bem-aventurança, tais eventos aconteceram no seu tempo. Dará alegria aos
fiéis que tais batalhas tenham sido vitoriosas, que tais províncias tenham sido
descobertas e conquistadas, tais riquezas trazidas para casa, para o Rei e para
eles próprios; e que um tal terror se tenha disseminado entre os infiéis e tal
admiração tenha excitado toda a humanidade.
«Porque quando, nos tempos antigos ou nos
modernos, foram tão grandes feitos levados
a cabo por tão poucos contra tantos, através de tantos climas,
atravessando tantos mares, para subjugar o invisível e o desconhecido? De quem
são os feitos que podem ser comparados com os de Espanha? Os nossos Espanhóis,
sendo poucos em número, nunca tendo mais do que 200 ou 300 homens reunidos e
por vezes apenas 100 ou mesmo menos, conquistaram, nos nossos tempos, mais
território do que aquele que possuem os príncipes fiéis e infiéis. Escreverei
somente, por agora, acerca do que sucedeu na conquista, e não escreverei muito
a fim de evitar a prolixidade.
«O Governador Pizarro pretendia obter
informações de alguns índios que tinham vindo de Cajamarca, por isso fê-los
torturar. Eles confessaram ter ouvido que Atahualpa aguardava o Governador em
Cajamarca. O Governador ordenou-nos então que avançássemos. Ao chegarmos à
entrada de Cajamarca, vimos o acampamento de Atahualpa à distância de uma
légua, nas orlas das montanhas. O acampamento dos índios assemelhava-se a uma
cidade muito bela. Tinham tantas tendas que todos estávamos invadidos por uma
grande apreensão. Até essa altura nunca tínhamos visto nada assim nas Índias.
Todos os nossos Espanhóis foram assaltados por receio e confusão. Mas nós não
podíamos mostrar qualquer medo ou virar as costas, porque se os índios tivessem
pressentido qualquer fraqueza em nós, até os índios que trazíamos como guias
nos teriam matado. Portanto, mostrámos ânimo e, após observarmos cautelosamente
a cidade e as tendas, descemos para o vale e entrámos em Cajamarca.
«Falámos muito entre nós acerca do que fazer.
Todos estávamos invadidos pelo temor, pois éramos muito poucos em número e
tínhamos penetrado até tão longe numa terra onde não poderíamos esperar receber
reforços. Reunimo-nos todos com o Governador, para debater o que deveríamos
empreender no dia seguinte. Poucos de nós dormiram nessa noite e mantivemos
guarda na praça de Cajamarca, vigiando as fogueiras do acampamento índio. Era
uma visão aterradora. A maioria das fogueiras era na encosta de uma colina e
tão próximas umas das outras que se assemelhavam ao céu brilhante salpicado de
estrelas. Nessa noite não havia distinção entre o poderoso e o humilde, ou
entre soldados apeados e cavaleiros. Todos faziam o seu turno de sentinela
completamente armados. Assim fez também o bom velho Governador, que andava por
todo o lado a encorajar os seus homens. O irmão do Governador, Hernando
Pizarro, calculou em 40 000 o número de soldados índios presentes, mas estava a
mentir só para nos encorajar, pois eram na verdade mais de 80 000 índios.
«Na manhã seguinte chegou um mensageiro de
Atahualpa e o governador disse-lhe: “Diz ao teu senhor para vir quando e como
lhe aprouver, e que, venha ele como vier, o receberei como amigo e irmão. Rezo
para que ele venha depressa, pois desejo vê-lo. E nenhum mal ou insulto lhe
será dirigido.”
«O Governador ocultou as suas tropas em redor
da praça de Cajamarca, dividindo a cavalaria em duas partes, tendo dado o
comando de uma ao seu irmão Hernando Pizarro e o comando da outra a Hernando de
Soto. Da mesma maneira, dividiu a infantaria, tomando ele próprio uma parte e
entregando a outra ao seu irmão Juan Pizarro. Ao mesmo tempo, ordenou a Pedro
de Candia mais dois ou três soldados de infantaria que fossem com clarins para
uma pequena fortificação na praça e para ali ficarem com uma pequena peça de
artilharia. Quando todos os índios, e Atahualpa com eles, tivessem entrado na
praça, o Governador daria um sinal a Candia e aos seus homens para que
começassem a disparar e fizessem soar os clarins, ao som dos quais a cavalaria
irromperia do grande pátio onde esperavam escondidos e prontos.
«Ao meio-dia, Atahualpa começou a reunir os seus
homens e a aproximar-se. Depressa vimos toda a planície repleta de índios que
não paravam de cobrir o terreno da retaguarda. Continuaram a aumentar por
destacamentos separados pela tarde dentro. Os destacamentos da frente estavam
agora próximos da nossa posição, e continuavam a sair mais tropas do acampamento
dos índios. Em frente a Atahualpa seguiam 2000 índios que varriam o caminho à
sua frente, e estes eram seguidos por guerreiros, metade dos quais marchavam de
um lado dele e metade do outro lado.
«À frente vinha um esquadrão de índios
vestidos com roupas de diferentes cores, como um tabuleiro de xadrez. Avançavam
enquanto removiam palha do chão e varriam o caminho. De seguida vinham três
esquadrões com indumentárias diferentes, a dançar e a cantar. Depois vinham
alguns homens com armaduras, grandes bandejas de metal e coroas de ouro e
prata. A quantidade de adereços de ouro e prata que eles carregavam era tão
imensa, que fascinava observar como o sol reluzia neles. Entre eles vinha a
figura de Atahualpa, numa esplêndida liteira com as extremidades das pranchas
revestidas a prata. Oitenta homens carregavam-no sobre os ombros, envergando
todos riquíssimas librés azuis. O próprio Atahualpa vinha luxuosamente vestido,
com a coroa na cabeça e um colar de grandes esmeraldas ao pescoço. Estava
sentado num pequeno tamborete coberto por um precioso almofadado, a repousar na
liteira. Esta estava forrada com penas de papagaio de muitas cores e decorada
com aplicações de ouro e prata.
«Atrás de Atahualpa vinham mais duas liteiras
e duas padiolas, nas quais estavam alguns chefes principais, e depois vários
esquadrões de índios com coroas de ouro e prata. Estes esquadrões de índios
começaram a entrar na praça ao som de grandes canções e, ao entrarem, ocuparam
totalmente a praça. Entretanto, todos nós, Espanhóis, esperávamos prontos,
escondidos num pátio, cheios de temor. Muitos de nós urinaram sem ter consciência
disso, por puro terror. Ao alcançar o centro da praça, Atahualpa permaneceu na
liteira elevada, enquanto as suas tropas continuavam a desfilar à sua frente.
«O Governador Pizarro enviou então Frei
Vicente de Valverde para falar com Atahualpa, para lhe pedir, em nome de Deus e
do Rei de Espanha, que Atahualpa se submetesse à lei de Nosso Senhor Jesus
Cristo e ao serviço de sua Majestade o Rei de Espanha. Avançando com uma cruz
na mão e a Bíblia na outra, e passando entre as tropas índias até ao lugar onde
estava Atahualpa, o frade dirigiu-se-lhe assim: ”Eu sou um Sacerdote de Deus e
ensino aos Cristãos as coisas de Deus, pelo que da mesma maneira te venho
ensinar a ti. O que eu ensino é o que Deus nos diz neste Livro. Portanto, da
parte de Deus e dos Cristãos, rogo-te que sejas seu amigo, pois tal é a vontade
de Deus e será sempre para teu bem.”
«Atahualpa pediu o Livro, para poder
examiná-lo, e o frade entregou-lho fechado. Atahualpa não sabia abrir o Livro e
o frade esticou o braço para fazê-lo quando Atahualpa, enfurecido, lhe deu uma
pancada no braço, não desejando que o Livro fosse aberto. Depois abriu-o ele
mesmo e, sem qualquer espanto perante as letras e o papel, atirou-o para uma
distância de cinco ou seis passos, com o rosto de um vermelho profundo.
«O frade voltou para Pizarro, a gritar “Venham! Venham, Cristãos! Venham por
estes cães inimigos que rejeitam as coisas de Deus. Esse tirano atirou o meu
livro da lei sagrada para o chão! Não viram o que aconteceu? Para quê ser
educado e servil com este cão cheio de soberba se as planícies estão cheias de
índios? Avancem contra ele, porque eu vos absolvo!”
«Então o governador deu o sinal a Candia que
começou a disparar as armas de fogo. Ao mesmo tempo soavam os clarins e as
tropas espanholas em armaduras, tanto a infantaria como a cavalaria, saíram dos
seus esconderijos em direcção à massa de índios desarmados que se apinhavam na
praça, emitindo o grito espanhol de combate “Santiago!” Tínhamos prendido
chocalhos aos cavalos para aterrorizarmos os índios. O troar das armas, a
estridência dos clarins e os chocalhos dos cavalos lançaram os índios numa confusão
de pânico. Os Espanhóis caíram sobre eles e começaram a esquartejá-los. Os
índios estavam tão apavorados que treparam uns pelos outros, formando
aglomerados e sufocando-se mutuamente. Visto estarem desarmados, eram atacados
sem perigo para qualquer Cristão. A cavalaria derrubou-os com os cavalos,
matando, ferindo e perseguindo. A infantaria fez um ataque tão violento sobre
os que ficaram que rapidamente a maioria tinha sido passada pela espada.
«O próprio Governador tomou a sua espada e o
punhal, penetrou na massa de índios com os Espanhóis que o acompanhavam e, com
grande bravura, chegou junto da liteira de Atahualpa. Agarrou destemidamente no
braço esquerdo de Atahualpa e gritou “Santiago!”, mas não conseguia puxar
Atahualpa para fora da liteira, pois esta estava muito alta. Apesar de ter
matado os índios que erguiam a liteira, outros tomaram rapidamente os seus
lugares e mantiveram-na na altura, pelo que desta maneira passámos muito tempo
a derrubar e a matar índios. Por fim, sete ou oito Espanhóis montados
aguilhoaram os cavalos, precipitaram-se para a liteira por um dos lados e, com
grande esforço, fizeram-na cair. Dessa forma Atahualpa foi capturado e o
Governador levou-o para o seu alojamento. Os índios que transportavam a liteira
e os que escoltavam Atahualpa nunca o abandonaram: todos morreram à sua volta.
«Os índios que permaneciam na praça, tomados
de pânico, aterrados com o disparar das armas de fogo e com os cavalos – algo que
eles nunca tinham visto – tentaram fugir derrubando uma secção do muro da praça
e correndo para o exterior. A nossa cavalaria saltou sobre o muro abatido e carregou
pela planície, gritando “Persigam os das roupas vistosas! Não deixem nenhum
fugir! Trespassem-nos com as lanças!” Todos os outros soldados índios que
Atahualpa tinha trazido estavam a uma milha de Cajamarca, prontos para a
batalha, mas nem um só se moveu e, durante todo este tempo, num um só índio
ergueu uma arma contra um Espanhol. Quando os esquadrões de índios que tinham
permanecido na planície, fora da cidade, viram os outros índios a fugirem e a
gritarem, muitos entraram também em pânico e fugiram. Era uma visão espantosa
porque todo o vale, ao longo de 15 a 20 milhas, estava completamente apinhado
de índios. A noite já caíra e a nossa cavalaria continuava a matar índios à
lança nos campos, quando ouvimos um clarim a chamar-nos para nos reunirmos no
acampamento.
«Se a noite não tivesse chegado, poucos dos
mais de 40 000 soldados índios teriam ficado com vida. Seis ou sete milhares de
índios jaziam mortos e muitos mais tinham braços cortados e outras feridas. O
próprio Atahualpa admitiu que tínhamos matado 7000 dos seus homens nessa
batalha. O homem morto de uma das liteiras era o seu ministro, o senhor de
Chincha, de quem ele muito gostava. Todos os índios que seguravam a liteira de
Atahualpa deviam ser chefes superiores e conselheiros. Todos foram mortos, bem
como todos os índios que eram transportados nas outras liteiras e padiolas.
Também o senhor da Cajamarca foi morto, e outros, mas o seu número era tão
elevado que não podiam ser contados, pois todos os que vinham no séquito de
Atahualpa eram grandes senhores. Era extraordinário ver um soberano tão
poderoso capturado num período tão curto, tendo ele vindo com um tão imponente
exército. Na verdade, tal não foi conseguido pelas nossas próprias forças, pois
éramos tão poucos. Foi-o pela graça de Deus, que é muito maior.
«As vestes de Atahualpa tinham-se rasgado
quando os Espanhóis o puxaram para fora da liteira. O Governador mandou que lhe
fossem entregues outras e, quando Atahualpa estava vestido, o Governador
ordenou-lhe que se sentasse perto dele e acalmou a sua fúria e agitação por se
encontrar tão rapidamente destituído da sua elevada posição. O Governador disse
para Atahualpa: “Não tomes como um insulto o teres sido derrotado e tomado como
prisioneiro, porque com os Cristãos que me acompanham, apesar de serem tão
poucos, conquistei reinos maiores do que o teu, e derrotei outros senhores mais
poderosos do que tu, impondo-lhes o domínio do Imperador, de quem sou vassalo e
que é Rei de Espanha e do mundo universal. Viemos conquistar esta terra às suas
ordens, para que todos possam chegar ao conhecimento de Deus e da Sua Sagrada
Fé Católica; e por causa da nossa boa missão, Deus, o criador do céu e da terra
e de todas as coisas que aí existem, permite que assim seja, para que tu possas
conhecê-Lo e saias da vida selvagem e diabólica que tens levado. É por esta
razão que nós, sendo tão poucos em número, subjugamos tão vasta hoste. Quando
vires os erros nos quais tens vivido, compreenderás o bem que te fizemos ao
virmos para a tua terra por ordem de Sua Majestade o Rei de Espanha. O nosso
Senhor permitiu que o teu orgulho fosse rebaixado e que nenhum índio pudesse
ofender um Cristão.”»
Excerto da obra de
Jared Diamond (1997), Armas Genes e Aço,
Relógio D’Água Editores. 2002. Páginas 72-77.